o dia do fim do mundo


Madrid
 

Se degelasse, derretesse. Se, assim, instantaneamente, apodrecesse tudo antes preservado pelo frio.  Se o líquido azedasse. Se o cheiro fundisse. Eu morreria, também.
Mas havia calor. Embora alguma espécie de som me dissesse que, no entanto, era apenas o calor do dia. Indubitavelmente, após o dia, vem a noite.
É isto que temos; a perspectiva de, eventualmente, vinte nove mil e duzentas noites.

Eu cheguei ao apartamento e até então eu não tinha visto uma calmaria daquela. Em toda a cozinha não havia nenhuma parte que eu pudesse enxergar o piso sem vê-lo através da água. Um tapete; límpido, frio. Um espelho transparente, sólido. As cadeiras flutuando.
Aquela atmosfera fez com que eu me desse conta de que o único som que tinha ouvido, ininterruptamente, sem notar, em todos aqueles anos, era a sirene de ambulâncias e carros de polícias. Lá fora este eco irradiava dos quatro cantos da cidade. Isto é a civilização pedindo passagem, desesperadamente. É um eco persistente mas que acaba silenciando-se com o costume.
Eu estava um pouco embriagado. Faltavam alguns minutos para amanhecer. O ar amarelo acinzentado tingiu as montanhas, os prédios, minha pele, a febre. Eu sei que o dia do fim do mundo terá esta cor.
Eu precisava dormir. Meu corpo, no entanto, dizia-me que tinha se esquecido de como se dormia. O embate alucinante da sucessão dos anos o fez acostumar com o cansaço, com a embriaguez cotidiana, com o mole e o peso das horas.
Abri uma mala, retirei as etiquetas da última viagem. Arranjei umas roupas e sapatos. Antes que pudesse fechá-la, adormeci. Pois, no céu, o sol já vinha alto e a luz oprimia minha retina, dilatava meus poros, dava o tom à dança dos ácaros sobre minha cabeça.
O vento esfarelava, enquanto isso, as cortinas. Aqueles grãos iam parar sobre meu corpo até que formaram uma fina camada de alguma coisa mais perene que aquela sensação de proteção. Coloquei-me em posição fetal e só acordei dois dias depois.

Entrei naquele Boeing e como num chute atravessei o Atlântico. Aportei em Madrid, sem minha mala. Imediatamente estava na Gran Via. Vi um fantasma na entrada da estação de Callao. Era meu fantasma, há vinte e cinco anos, mirando Don Quixote através da lente da câmera fotográfica.
Naquele tempo eu estava sujeito a estas revelações. Aquela primeira vez em Madrid era sufocadoramente aniquiladora. O meu fantasma pousou o olhar sobre alguém, mas quem? Havia algo além de sobrenatural naquela visão – como dizer? O fantasma continuava completamente imóvel, a câmera fotográfica amarrada ao pescoço, pendendo. O olhar fixo.
Então o fantasma partiu, desceu as escadas da estação e se perdeu debaixo da terra. Havia o terror, a acabrunhante incapacidade de seguir adiante. Mas uma voz maior que o medo catalisou uma reação em cadeia no meu sangue. As veias arderam. Eu queimava de dentro pra fora. Uma lufada de oxigênio bateu violentamente contra mim, que permanecia imobilizado pela aparição. Fora este momento, tudo era completamente novo. Irreal. No entanto, o neon do Hotel Atlântico parecia o mesmo.
Esperei que a noite passasse. Comi dois ovos cozidos e um waffer. Desci e troquei seis, sete ou mais palavras com alguém no saguão.

- As pessoas deveriam ter o direito de ser felizes em seu próprio país.
Estava completamente desprevenido, pronto para explorar as escadas do Hotel como um cachorro e me recolher como um monge no quarto.
- Oh, se realmente pudesse viver de novo!
Esta última experiência abria em mim uma ferida, de persistência e coragem.  Momentaneamente!
Todos aqueles silenciosos, estóicos, nos sofás. As palavras dissipavam-se e eu me perguntava se algum dia eu conseguiria interpretar estes sentimentos em mim. Estas coisas estranhas de encontrar-me vivo, sozinho, desconhecido, em um saguão de um hotel que permaneceu intacto por vinte e cinco anos, como uma pirâmide. Como se vinte e cinco anos fossem vinte e cinco minutos.



2


Então nos encontramos nos Jardins do Bom Retiro. Sem nenhuma palavra havíamos nos reconciliado. Lola pôs-se a remar. Não dizíamos nada. Sabíamos que continuávamos estrangeiros, alienígenas. Há vinte e cinco anos quisemos ter neste mesmo lugar um momento extraordinário.
Então ela interrompeu:
- Na época das invasões francesas, Napoleão acampou sua tropa aqui. Tudo isto deve ter sido destruído. Agora, no lugar das flores filipinas, estão essas sapientes obras de arte.
E eu compreendi que ela continuava exposta, oscilante, torturada.
Ancoramos. Estendeu-se na grama e segurou meu braço. Estava sendo enforcada! e mais adiante via pessoas que a aplaudiam, que a veneravam, olhos atarantados que procuravam os seus. No entanto, estávamos completamente a sós. Ela não se importava e discursava. Repassava as palavras que, ocasionalmente, nunca diria.
 – O que você acha?
E eu me perguntava também, a mesma coisa. Mas respondi:
 – Você está pronta?  
– Como se fosse possível estar pronta e distinguir-se dos outros na guerra.
Somente, um leve enfado, um desvanecer de som na voz – enquanto o sol ardia tropicalmente – uma confusão ou o fato de conhecermo-nos por tanto tempo, indicavam que ela continuava uma desajustada mentirosa. Mas permanecia sentindo-se diferente, com sentimentos marginalizados e, de certa maneira, especial; pois tanto eu quanto ela olhamos para o céu de maneira reprovativa, com as mãos em toldo, como se assim suplicássemos ao sol – que de repente dilacerou uma nuvem e nos queimava como carne em chapa – perdão.
– Por que Deus fez o mesmo céu em todos os lugares, tão familiares? E por que os homens fazem tetos tão distintos?
Ela aquiesceu-se. Existia verdadeiramente, sem que pudesse negar. Eu sentia que àquela percepção de vida vexante se resguardava desejos telúricos e primordiais: como ter dinheiro suficiente para fazer aquilo que sempre quis; nada! E desta forma acreditar nas pessoas, mesmo no amor. Mas ela nunca admitiria e eu só poderia pressupor precariamente entre as aleluias e consternações de nossos encontros. Encontros que se tornaram precários com o tempo e a distância. Mas eu estava ali, tinha ido até o meio da Espanha, pois ela, enfim, receberia um prêmio pelo o que sempre fizera; poesia! E no discurso de agradecimento apareceria meu nome. Pele, dinamite, alumínio. Apareceriam, de soslaio, também, almas já mortas, cargas do passado, inegáveis. E, por isso, eu não poderia fingir desconhecê-los.
Nos meus ouvidos suavizavam sons de festas distantes. Pensava no meu cachorro chinês, na cozinha alagada, em Minas Gerais. Por um instante reconheci nela a catequista da quermesse da infância. O leite entregue na porta. A minha paixão pelos pastéis de queijo, a primeira golada de cerveja – entre as bandeirolas de revista e a poeira das montanhas. A solidão dos sinos centenários, enferrujados de calor. A inadequação e o estranhamento que eu tinha em estar nestes acontecimentos da juventude, que só anos mais tarde eu percebi o que significavam. O fato de qualquer cidade abaixo da linha do Equador ter um muito em comum de precário com a Macondo e os habitantes com os Buendía.
  
Crescemos violentamente, sem, no entanto, encontrar resposta alguma. Ela tinha se tornado o que queria. Uma poeta reconhecida. Mas pagou um preço alto, não tão alto como o meu, que era uma passagem de um trem sem paradas.
Sentados sobre a grama, poderíamos criar raízes, compartilhar. Mas hesitamos. Ainda havia algo a ser feito. Ela tinha, dali pra frente, a luta épica contra um câncer. Eu tinha um cachorro, um apartamento, um emprego, algumas dores nos ossos, alguns cabelos.
Ela, com sua mente senil de poeta, imaginava que nossa separação tinha ocorrido numa estação de trem. Eu embarcava e ela corria paralelamente, sem tocá-lo. Até que, cautelosamente o trem ganhasse velocidade e, em sua condição febril de humanidade, não mais pudesse acompanhá-lo. A verdade era que estávamos bêbados demais para conter as emoções, eu chorei em um taxi, entreguei-lhe um livro com uma marcação e desapareci em um aeroporto, sem olhar pelo espelho. Catorze horas depois, reconhecia entre vitrines de coxinhas e lingüiças, minha nação. E dali em diante, sabíamos; estava terminado. Mesmo que nos encontrássemos no mesmo ano, mesmo que pudéssemos ir ao mesmo café na praça do Marquês novamente, estava terminado. E, não nos encontramos no mesmo ano. Quando aconteceu já havia seis anos entre nós. Ela ganhou um prêmio para escritores com idade inferior a 39 anos e partiu pra Hong Kong, logo depois, pra escrever uma história de amor.
Nós, que nunca tínhamos sido verdadeiros amantes; no sentido real (?). Mas o mais próximo do que conhecíamos de amor verdadeiro. Eu voltei para o que poderia chamar de lar, construí uma carreira que nunca quis ter e deixei de lado o futuro que tínhamos traçado.
Ela nos julgava. Eu era o grande cavaleiro medieval acovardado. Era ela a amazona desbravadora. Pulava de país em país tirando poesia de esmalte e folha - rejeitava pedras-, conhecendo pessoas, relacionando-se com os personagens que criava. Considerava isso viver.
E eu deveria me culpar, por ter aceitado. Mas eu escolhi a vida.
E ela? Um câncer, um troféu.
- Eu tenho saudades do nosso futuro.
 
3


O hotel interditou-se. A cozinha incendiara-se. Eu vi o neon pulsante transformado em lava. HOTEL ATLÂNTICO avermelhado e liquefeito. O horror, o horror!
A crise deflagrou-se, instantaneamente. Havia, como sempre, sirenes. Reflexos rodopiantes, pessoas cadáveres, mendigos indiferentes.
Uma fina chuva começava a tamborilar sobre nossas cabeças. Em meus ouvidos chegavam sons monótonos, um tac tac irremediável, o estalar da água e do fogo, que ainda ardia. Subitamente o peso de uma cinza sobre mim me derrubou. Meu pulôver de lã começou a se desfazer, era calor. Era o calor e o peso do mundo. Tentei me recompor, mas este acontecimento estourou em mim um deslizamento, uma erosão, um morro em cavalgada. Um terremoto. Prestei atenção e me senti constituído de cinza e terra. Agora só enxergava o som das sirenes. Meus ouvidos silenciaram. Meu peito estava aberto, completamente árido. Brotava entre as rachaduras milhões de galho secos, retos. O orientar daqueles sentimentos, subindo e descendo na atmosfera, chocando-se em mim como raio lasers de filmes de ficção, destroçando meu corpo; foram interrompidos, subitamente, quando, portanto, apareceu um jovem com sua câmera empunhada.
Ele ajustava-se, contorcia-se, posicionava-se, procurava ângulos. Poderia enfrentar toda a tragédia do mundo através da sua lente Nikon, insopitável. Passou indiferente por mim, mas não pude deixar de reconhecê-lo. Este jovem, eu o vi uma vez em Ouro Preto, em um dia amarelo fraco. Os cabelos selvagens. Era um jovem da minha infância. Era aquele jovem frustrado por ter perdido um real na máquina de pegar bichinhos de pelúcia. Pois essa era a maior invenção daquela época. A possibilidade de, em vinte e três segundos, converter um real em algo muito mais valioso e eterno. Mas a decepção era incontornável. Um real era toda a mesada do mês, que seu pai concedia após o cumprimento de exaustivas e intermináveis tarefas.

Nunca fui a cerimônia, nunca soube, portanto, se meu nome fora citado no discurso de Lola. Eu sei que o meu não comparecimento não significava apenas um atraso. A morte entrava em sua festa. No entanto, não saberiam explicar. Duas camareiras e uma hóspede holandesa morreram no Hotel Atlântico.

Ouro Preto

As coisas sucederam-se tão rapidamente que eu senti uma força aterradora naquele ano. Lola morreu três meses após Madrid.
Eu sentia uma espécie de liberdade atormentada, úmida. Eu tinha atravessado muitos mares navegando uma embarcação rudimentar, vivendo antropofagicamente, naufragando, sobrevivendo em ilhas remotas. Mas no fim, era resgatado por acontecimentos que me atraiam para uma reconciliação com a vida.
Meus laços familiares estavam quase extintos. Eu era o penúltimo sobrevivente do sobrenome do meu pai.
Minha tia, já muito velha. Professora de matemática, aposentada. Desconhecia o poder das palavras: Te amo. Eu cheguei lá e em toda a cozinha uma ópera de fungos brancos modulava um odor acre e verde. Do piano escorria uma fonte necrófila, havia luzes de natal embora fosse março; sobre a mesa, três maçãs. Uma guirlanda de formigas.
Não havia relógio sequer. Na verdade, tudo estava à toa. Minha tia definhava no seu quarto, bonecas de porcelana, tapetes e sua gata. Eu senti que era um desses pedintes que nada pedem, pois não sabem o que querem. Ela me dizia: sua herança está aí.
Abri um álbum, novo. Ela dedicou-se a criar uma espécie de crônica fotográfica, sob um ponto de vista debruçado em mim. Recém nascido, a primeira bicicleta, o sete de setembro na escola, o Hotel Atlântico em Madrid...
Agradeci. Não notei imediatamente, só muito mais tarde, que ela havia deixado páginas em branco.
Ela quis mostrar que houve uma coesão em minha vida.
- “o homem envelhece, mas sua neurose não muda, antes se agrava”
Eu não esperava aquilo, agora. Em um pedestal estava a gata empalhada. O guizo de gato - este era o único barulho de Ouro Preto. No álbum, cenas que não vi. Minha mãe encostada em um Fiat vermelho, grávida de mim.
Não havia foto nenhuma dela. Só fotos de pessoas mortas e eu.
Ela não queria morrer, definitivamente. Sua fé, inexistente. Ela estava morta de medo. Mas eu que sobreviveria a todos, dizia.

Ela me disse que a cidade estava sobre aquela bruma há muitos anos. Eu acreditava, pois foi isso que ajudou os antigos. É um tempo para morrer também.
Além disso, acrescentou, que em um terrível dia, antes de ir pra cama, enlouqueceu. Preparava seu café, obstinadamente. Um raio muito intenso atravessou-a. Não fora atingida, como ressaltou. Foi um raio que entrou como uma cobra por um interruptor e saiu pelo outro paralelamente disposto. Bem a sua frente. Este acontecimento, por certo, embaralhou suas ideias, pois no mesmo momento viu refletir dos pratos uma luz estranha e desconcertada. Um magenta que cobriu como tinta a maçã cortada em quatro. O azeite era vinho. Sem fé, não pensou em milagres. Só sabia de milagres de santos, não de raios. Esfregou os olhos, duas, três vezes, e percebeu que a transformação tinha acontecido. As ladeiras de Ouro Preto eram, agora, uma pororoca de pedras e janelas coloniais. O pico Itacolomi, ao fundo, era um desfiladeiro de prata. Mas haja otimismo, pensei.
Estava louca.
Não morreria.
Ela era a única ateia que eu tinha conhecido.
 
2




Há uma força, um efeito e um esplendor em abrir janelas muito tempo fechadas. Um jato de energia. Há cemitérios que guardam a mesma potência. Todas as nossas cidades são cemitérios. Durante a noite, todas as janelas fechadas, as pessoas dormindo, protegidas, este pequeno espetáculo, abajures e lâmpadas. O vigor do ciclo, a civilização. Há uma crueza nisto, também. Há mais crueza nisto.
Nada aqui esquenta. Não borbulha. Vai o pobre descendo a rua. Vai o professor com o diploma escondido. O poeta está sentado frente ao Cine Vila Rica e ao contrário do que se imagina é a pessoa mais distraída de todos os tempos.
Há quem enxergue inesgotável linguagem nestes sinos. Mas para mim, eles terminam ao dizer-me que são vinte e três horas. A rua que se segue confunde minha mente. Uma subida sinuosa que parece terminar no infinito. Por trezentos anos esta rua é molhada vagarosamente. Isto, definitivamente, não pode ser chamado de cidade. Só coexiste um único bar. Barroco.
Olhei a placa de relance, um exemplo comercial atemporal. Lá dentro o único garçom que conheci: tentou se matar duas vezes.
Soube disso há vinte e poucos anos e agora espanta-me o fato dele ainda estar vivo. Diziam muitos que ele tentou subir o Everest na juventude e desistiu, pois só se tem forças para subir um Everest uma única vez.
Envolveu-se depois em um assassinato. Era apaixonado pela filha de um gerente de banco. Preparou uma emboscada com a amada, compraram revólver e corda. Amarram o patriarca em uma árvore perto da cachoeira do Falcão. Discutiram. Não havia morte nos planos, só dinheiro; mas ninguém pode prever os sentimentos.
O peso deste acontecimento o transformaria em outra pessoa. Mas ele se entregou.
Ela pulou da Curva do Vento e feneceu de fome e frio durante quatro dias, sem espinha, em uma pedra.
Depois disto não tentou se matar mais. Era uma espécie de auditor. Definia o momento para passar o trapo sobre a mesa do bar, o momento de retirar o cliente bêbado. Entendia todas as pessoas do mundo. Sabia exatamente o que os olhos do turista francês queriam dizer em português.
Nunca olhei diretamente para ele. Mas o conhecia.

- Uma cerveja, por favor.

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