Big Bang


Minhas mãos coçam intermitentemente nos últimos tempos. Talvez seja o exercício da profissão que tem me provocado essa sensação de tato. Vivo de revisar textos, revisar ideias, revisar pensamentos, revisar complexidades e nem sou especialista nestas artes. Mas evoco o axioma para me justificar: Em terra de cego quem tem um olho é Rei.
Agora mesmo estou no ápice, nos últimos segundos, estourando o prazo e me desvirtuei completamente. Creio ser meu espírito indócil, preguiçoso, anarquista, o responsável por ceder às coceiras. Não sei se esse texto é resultado de reflexão ou se finalmente poderei distorcer a teoria vigente de que a inspiração não tem a ver com a escrita. No entanto, algo em mim me incomoda. Estou irrequieto, muito mais que o natural. Talvez seja a possessão do entusiasmo criador.
Tudo começou hoje pela tarde, minutos antes de cumprir o protocolo: vestir o jaleco, bater o cartão, empunhar os pincéis... Deixei o automóvel sob o clarão habitual desta terra, selecionei o material do dia, e me encaminhei aos portões imaculados. Era para ser uma passagem corriqueira, mas o operário responsável, aquele que detém a infinita e incólume simpatia cristianizada - independentemente da situação - proferiu o sermão do dia.
“Na Argentina já está faltando comida. Quem mandou aprovarem o casamento gay!”
Já há tempos eu me habituei a este tipo de interferência. Geralmente balbucio qualquer coisa em resposta, ou então digo algo incompreensível, muito recomendado e comum na minha profissão. Hoje apenas retribuí o sorriso e completei o apotegma.
“Realmente estamos perdidos”
Normalmente o único pensamento que me vem à cabeça quando tenho que passar pelo crivo deste “colaborador”, é “faça-o velozmente, evite contato visual”.
Tento poupar-me da estupidez diariamente, mesmo que, na verdade, eu possa combatê-la... pressupondo a hierarquia que o meu cargo me concede. Em verdade vos digo, sou apenas um cidadão domesticado (ignore o paradoxo) que quer passar despercebido no mundo real, sem levantar suspeitas ou frisson. Na juventude eu arguiria, argumentaria, lutaria; hoje, diante do meu passado de fracasso, procuro outros tipos de prazer.
Mas parece que desta vez algo tocou o âmago, faiscou. Há muito tenho assistido, prostrado, passivamente aos debates cheios de insanidade, demência, loucura social que tem tornado todo e qualquer tema abstruso, dual. Sei que já está longe o meu eu que sonhava e idealizava, hoje subsiste o eu preso ao presente, às contas, ao cansaço, à falta de tempo para pensar. Fatalmente me tornei o que, desde os primórdios, enojei: uma engrenagem – substituível, é preciso ressaltar (ou talvez tenha sido sempre isso). Mas parece o mundo mais confortável agora. Também é desde os primórdios que encontrei segurança numa cama quente e adequada (mesmo que nem sempre tenha sido); o que me move é o desejo de me aconchegar no final do dia, ignorando o ciclo. Mas nem só disso posso viver, está claro. Agora preciso destruir uns fantasmas, criar uma guerra, arriscar-me, sim, arriscar-me. Não me insensibilizar.
Eu vivo em uma cidade de empanados, posso andar 500 km em todas as direções e dificilmente encontrarei outra espécie. Anteriormente, todos meus esforços me fizeram distanciar deste lugar, mas eis-me aqui e o porquê é ser mais um vencido.
Em determinado momento, passei de filho imaculado e adorado a um pária. De criança, já faziam vistas grossas a minha determinação em não seguir o imposto. Mesmo quando ainda não tinha opinião, já não via sentido nessa expressão monástica, que ditava, amordaçava, e me excluía. Tive de lidar sozinho com isso, muito sozinho, mas venci. Não deixei que as chantagens, as repreensões, os castigos me fizessem aceitar a condição que me infligiam. Tentei, de fato, provar minha existência, minha individualidade, meu eu, sendo quem eu era. De antemão, entretanto, quero que não imaginem alguém totalmente seguro ou forte. Sempre fui pusilânime, covarde. Nunca me arrisquei a saborear uma pontuação abaixo da média na escola. Mesmo na universidade, apostei naquilo que parecia mais fácil e de fato foi. O que eu queria? Nem me lembro mais.
Acontece que eu estou com ¼ de século nas costas. Engordei. Sei que as arestas da engrenagem estão se desgastando lentamente e tão logo ocorra ela será reposta. Mas gostaria muito, se há alguém vivo aí que consegue me ouvir, que possa me entender ou que se sinta como eu, de ajuda. Eu gostaria muito de estar vivo quando as coisas já estiverem modificadas. É egoísta, mas minha condição só me dá uma chance. Não quero que pessoas de outro tempo leiam isto e se compadeçam, sintam-se felizes e reconfortadas por viverem no momento em que o mundo dirimiu os problemas, contornou as dúvidas, amenizou os conflitos.
Já não me basta viver sob o poder dos burocratas, dos criminosos, dos falsos profetas, dos desgraçados deste mundo. Não posso me confortar na alienação apenas, até mesmo a alienação poderá finalizar-se. Não posso me apegar a nada, pois nada é seguro. Preciso que alguém me ajude a encontrar um meio eficaz de disseminar a razão. Mas veja bem senhores interessados, não poderá ser pouco a pouco... Isto é pra já. Posso parecer alarmista, mas a verdade, quando empreendo um olhar histórico sobre as coisas, sinto que no final sempre há progresso. Tenho sangue, no entanto; sou destes seres da nossa espécie que sentem dor, que deseja inteireza. E acredito que um átomo, apenas um, possa desencadear numa desproporcional revolução.

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