segunda ou terça-feira

Quando nesta manhã me dobrei para tirar do meu sapato, com um peteleco, uma linha negra; este gesto banal foi seguido por um deslizamento e avalanche de sensação, tal qual uma gota de orvalho ao cair, e ao me recompor - para dar continuidade ao embate monótono do cotidiano - senti-me constituído de gotas de orvalhos, muitas, infinitas, que ao caírem se desfaziam e voltavam ao telúrico, ao início, ao primordial.


Aos 23 anos, talvez eu nunca tenha sido tomado por essa tal avalanche de sensações e agora bastou eu me dobrar para tirar um fio negro do sapato para que essa ação transgredisse em mim, impetuosamente, essa percepção de vida vexante.


O tempo parece estar se arrastando com tal força, que meu corpo parece desgastado. Minha idade e meu tamanho sempre pareceram proporcionais, mas a ação intempestiva da natureza sobre meu corpo parece ter me diminuído. Sei que existem intenções, eu posso sentir a engrenagem das coisas propensas em relação a mim, mesmo que haja um invólucro que oculta o real, uma harmonia enganadora que me leva a um lugar remoto, iluminado por uma luz etérea, no entanto, mais espessa que o escuro da morte.


Nesta manhã, quando chocaram-se ambos, orvalho e solo, fui levado a concordar que há uma dissolução iminente e eu tenho sido atraído para esse desfazer. E assim passou a se debater em mim, como lutas intestinais, os motivos que fazem com que hoje sejamos levados para a cama de outra pessoa e no dia seguinte, de repente, nos separamos e não nos vemos mais. Nunca mais.



"Eis o que eu aprendi

nesses vales

onde se afundam os poentes:

afinal tudo são luzes

e a gente se ascende é nos outros.

A vida é um fogo,

nós somos suas breves incandescências."


Fala de João Celestioso ao regressar do outro lado da montanha.

(Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra - Mia Couto)

Um comentário:

  1. O maestro Taïsen Deshimaru fala bem disso em seus contos da filosofia zen. Quer dizer, a iluminação repentina, essa avalanche de sensações. Procure saber mais sobre ele, ou talvez eu até possa te emprestar; há o empecilho de que o livro que tenho seja em espanhol, mas creio eu que você consegue ler de boa, Wendel.
    Enfim, interessante sua reflexão do seu momento das gotas de orvalho... Continuo seguindo o blog e ando gostando disso. Abraço!

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