Um passado com manchas

São 3:15 da manhã quando começo a escrever esta postagem. Finalmente consegui terminar de ler Contos Inacabados, do Tolkien. Talvez a leitura mais exaustiva que tenha feito deste autor. Digo finalmente, pois nos últimos dias fui tomado por uma angústia e ansiedade por livros de aventuras que só são remediadas quando chego ao fim das histórias. Primeiro Moby Dick, depois Contos Inacabados e agora, como presente pela colação de Grau conseguida na altura do meu aniversário, o livro tão querido antes, mas nunca comprado, Contos Completos, V. Woolf. No entanto, 3h da manhã não é estimulante para começar uma nova leitura. Ao menos nesses tempos, que tenho sido obrigado a encarar a existência de um cotidiano não menos avassalador que os tempos desregrados da temporada europeia.

Não hesitei, contudo, em ao menos folhear o livro e ler a dedicatória feita pela minha tia, ao comprá-lo. Ao acaso meus dedos pararam no conto "A marca na parede", e como quem começa a ler despretensiosamente, cheguei ao final dele e de súbito me lembrei de uma daquelas tardes improdutivas na biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, o melhor esconderijo de portugueses e brasileiros, em que eu não conseguia dissertar sobre Baudelaire e tentei encontrar inspiração imaginando acontecimentos a partir de coisas que já tinha lido. Escrevi, então, o conto abaixo. Encontrei este arquivo em uma busca rápida pelos emails do yahoo.

É o meu ponto de vista através de uma leitura de um dos contos de Virginia Woolf, que talvez nunca tenha me chamado à atenção como Kew Gardens, mas que se tornou significativo como tem se tornado as coisas que aparecem em noites ocasionais como esta.

Apesar dos problemas estruturais e ser um texto mal escrito, a despeito de nunca ter passado por uma revisão, é um texto engraçado.

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Eu estava na biblioteca quando ouvi um grito de espanto ou de susto.

No momento que aconteceu não estava lendo nenhum livro, embora houvesse um amontoado deles a minha frente. Estava distraído, com o olhar fixo numa mancha na parede.

Assim, lembro-me que havia uma senhora ao final do corredor limpando obstinadamente algum líquido que fora derramado no chão. Eu, inerte e absorto no silêncio, pensava em como aquela mancha tinha ido parar naquela parede. Mas é surpreendente a rapidez com que nossos pensamentos se precipitam sobre outra coisa e quando tentamos voltar à coisa anterior já estamos perdidos num abismo enorme que separava uma coisa da outra.

Eu ouvi o grito e pensei que ele viesse de dois ou três andares acima, ou talvez abaixo.

Percebi que a senhora já não empreendia suas forças à limpeza e já tinha ido a qualquer outro lugar, sumido misteriosamente. Pensei em, talvez, investigar o grito, mas meus olhos novamente desviaram-se à mancha. Notei, imediatamente, que havia uma mesma mancha paralela. Eram pequenas e redondas, negras contra a parede branca. Não tinha certeza do que poderiam ser. Não me parecia um furo de parafuso ou prego, não parecia mesmo uma perfuração. No entanto, não tinha certeza alguma, pois quanto mais fixava o olhar, mais turva as manchas pareciam. Neste momento também, de súbito, veio-me a constatação que me ocorriam problemas na visão.

Oh meu Deus! Depois do fôlego e da resistência de antes agora apetece te tomar também a sanidade dos meus olhos? Eu que sempre fui a única pessoa da família com a visão perfeita. Minha irmã nasceu estrábica, perdeu anos da infância em tratamentos dolorosos para converter o diagnóstico – cuja cura minha mãe atribui a um milagre de uma santa – e depois foi premiada com uma miopia de herança paterna. Também não me recordo da imagem de tios e avós sem óculos, além dos primos. Já eu, sempre gabei de uma boa visão. Houve um jantar, lembro-me bem, que estava toda a família reunida a volta de uma prima que ganhara um anel de noivado com um diamante. Ela vangloriava-se do noivo rico, embora o diamante fosse minúsculo, imperceptível diante do mau gosto da colossal aliança que o sustinha. Tão pequeno que alguém disse: "não consigo vê-lo", e irresolutos notaram que o brilhante não estava lá. Era uma ilusão e por isso ninguém fazia ideia do tamanho ou sabiam quando sucedeu a perda. Prontamente jogaram-se no assoalho e começaram a investigar cada pedaço sólido que encontravam. Eu não dei importância e pensei mesmo que ela tivesse perdido em outra altura e que o desaparecimento seria uma daquelas perdas misteriosas que nos acontecem na vida e nos fazem pensar em como somos incapazes de evitar situações ocasionais, tão rápidas e fluidas, tão silenciosas, que nos deixam completamente perdidos no espaço e no tempo do acontecimento, desamparados pela incapacidade de nos ajustarmos e controlarmos o que possuímos. Mas quanto a minha visão, eu tinha uma capacidade de rapinante. Ao olhar para baixo, como por acaso, vi um ponto luminoso encaixado em uma fissura causada pelo frigorífico que tinha estado lá durante uns anos antes, o diamante. E, agora, mal consigo distinguir uma mancha superficial de uma perfuração. O que é de surpreender é que minha hereditariedade só tenha evidenciado-se neste momento, a essa altura da vida que tanto necessito dos meus sentidos. Era provável, que não tivesse ouvido nenhum grito, afinal. Podia ser que eu tivesse ouvido o que para os outros com visão e audição normal fosse apenas vento ou o ruído de uma cadeira. Se o enfraquecimento de um dos sentidos amplifica algum outro, isso seria perfeitamente aceitável. Já não havia certeza. Só queria poder recuperar a disciplina do trabalho que a mancha e o barulho me fizeram perder.

Daqui um ou dois anos serei, certamente, uma daquelas pessoas que nos perguntam qual direção tomar para a linha tal do metro. É curioso como um pensamento liga-se a outro e evoca acontecimentos genéricos e cotidianos que não importam em nada na nossa existência. Imaginei como eu ficaria exposto, insípido, inútil e pesado para este mundo, tal qual aquela senhora espanhola que pedi para tirar-me uma foto frente a um monumento qualquer e ela disse que não enxergava muito bem, quando eu disse, "apenas mire e aperte o botão" e percebi que ela não fazia ideia do que era um disparador, que talvez nunca tinha antes tocado em uma câmera fotográfica. Não ficaria espantado em saber que ela ainda fosse viva. O que é de assustar são os anos que passaram desde a fotografia. E eu estou aqui procurando as mesmas coisas que procurava naquela época. É como se eu tivesse apanhado um comboio daqueles super velozes, e atravessado toda essa biblioteca sem reparar em nenhum pormenor, tão instintivamente e rápido, tudo tão contingente, tão apenas por acaso. E, no entanto, a lenta derrocada de momentos como este da fotografia, que me afoga neste escuro e nesta neblina de tantos anos passados e me fazem deparar com uma mancha inútil e disposta simetricamente a outra numa parede qualquer, que, além, não ajudam nem dão alternativas nenhuma a qualquer duvida ou incerteza física e subjetiva que são inerentes a mim ou que se acumulam com as experiências repetidas, as quais permitem a caminhada pela agradável sensação de realidade, pelo vislumbre da solidez das coisas, do mundo impessoal a nossa volta, que despertam a aptidão para a vida e a felicidade, embora com a mais leve brisa, todas essas coisas misturem num instante e no outro desvanecem e se tornam uma mancha, tal qual esta na parede.

Enfim, não há mancha alguma. Mas viro-me para a parede paralela e a outra continua inerte. Então, o que foi isso? Um inseto? Uma sujeira? Não era nenhuma perfuração ou mancha superficial, mas uma protuberância? O que torna o diagnóstico da cegueira ainda pior. Talvez duas doenças combinadas.

E por quê? Afinal, por que somos submetidos a isso? Por que somos jogados nesses espaços de luz e trevas, cheio de repetição, cheio de pequenos mundos românticos, em que somos sempre vítimas em toda a narração e no fim a personagem descobre que não pensou ser o herói como se supunha. Mas o responsável.

É uma questão de importância, sim. Toda a realidade já foi descrita e perseguida. Para personagens só restam espectros sem profundidade e sem ação, permeados por uma única verdade: a morte. Que os romancistas modernos livrem-se desses reflexos de esperança, infinitos, mas afinal, vazios.

Quando deparei era muito tarde e eu estava atrasado para as aulas. Tinha estado perdido numa digressão sobre uma mancha por quanto tempo?

Subi as escadas e fui deixar os livros no carrinho quando notei uma certa confusão no saguão. Reparei em olhos perplexos. Estavam todos com um ar de espanto. As ideias vinham mas fugiam. Alguém chegou ao meu lado e disse:

- Encontraram um aluno morto na seção de literatura francesa.

3 comentários:

  1. "Por que somos jogados nesses espaços de luz e trevas, cheio de repetição, cheio de pequenos mundos românticos, em que somos sempre vítimas em toda a narração e no fim a personagem descobre que não pensou ser o herói como se supunha. Mas o responsável."

    Simplesmente uma das melhores relações da vida com o indivíduo que já li.
    Mas, dentro disso, fica uma questão: o personagem descrito no conto é aquele que o descreve?

    Um abraço,

    Pedro.

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  2. pedro, prefiro pensar que é pura ficção o que escrevo!
    obrigado por comentar!
    abraços!

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  3. Interessantíssimo, o conto. Parabéns!
    Depois remexa meu blog, www.juannarowe.blogspot.com

    Abraço,
    Juan Narowé

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