Portugal e Europa

Em Barcelona lê-se: Nenhum ser humano é ilegal
Vivo no continente do descontentamento há um ano. Estou nessa Europa entorpecida, em crise de identidade, à margem dela. Você resolve as ambiguidades do texto.
Eu falo de um continente que vive, hoje, um sentimento romântico de vitimização. São vitimados pelo multiculturalismo em próprio solo.
Cá em Portugal – esse pedacinho de terra, não só geograficamente mas também sentimentalmente longe do resto da Europa – há uma necessidade de garantir a existência de uma cultura que tem sido abandonada há séculos pelos seus. Diz-se muito por aqui que mais de quarenta por cento da população portuguesa está no estrangeiro.
No Porto, segundo maior centro urbano deste país, não é difícil deparar-se com inúmeros edifícios e casas abandonadas. Mas é um número relevante. E esse abandono de residências é um reflexo do deserto que aqui tem se tornado. E o deserto já não é só territorial.
É certo que Portugal não vive e nunca viveu uma situação de imigração como vive e viveu países como França, Alemanha, Espanha ou Inglaterra. Não há aquela onda massiva de imigrantes aqui, mesmo os africanos da região metropolitana de Lisboa não são os africanos magrebinos de Île-de-France.
É certo que historicamente a península ibérica foi colonizada em vários momentos por mouros, que aqui estabeleceram-se, e um leigo em genética diria: “o que dá para perceber na pele e nos rostos dos portugueses”. Eu digo colonizada, talvez diacronicamente, mas somente para enfatizar a ironia e levar o termo adiante. Porque a Europa diz-se sempre invadida.
Por séculos a Europa vendeu a ideia de continente civilizador. Foi preciso o contemporâneo Levi Strauss para superarem a ideia romântica de interlocutores de Deus. Mas para os habitantes, em geral, essa ideia ainda é viva.
Portugal, que não participou da segunda guerra mundial, mas, hoje, vez ou outra, manda umas dezenas de militares para Iraque ou Afeganistão, sente saudades. Também pudera, de potência proeminente para desolamento e abandono. Portugal sente nostalgia de ter sido dona do Brasil.
Aqui, parece-me que consomem mais da nossa cultura de massa que nós mesmos. É claro que ainda estamos longe de ver emergir no Brasil uma sociedade menos interessada no trivial. Em Portugal o trivial é luxo. Digamos que o trivial brasileiro, repudiado pelos intelectuais no nosso país e estigmatizado desde sempre mas mesmo assim consumido, é tão comum em Portugal como azeite ou futebol. Mas aqui consome-se mais havaianas que vinho do Porto no Brasil, digo em escalas proporcionais. Talvez só Saramago não se interesse pelas novelas no Leblon. Mas convenhamos que ele não se interessa tanto assim pelo Mosteiro dos Jerônimos também, (falo do interesse comum).
Quando abrimos um jornal no Brasil nunca esperamos encontrar uma notícia de Portugal. Isso devia ser uma rotina mais frequente em 1800, para falarem alguma coisa sobre os novos impostos da corte portuguesa ou da família real, que devia ser o mais perto que temos de celebridades. Nos dias em que estamos a nossa pátria-mãe tornou-se tão relevante quanto saber o que acontece em Andorra. Talvez na Páscoa vemos uma ou outra notícia sobre o preço do bacalhau ou receitas novas com frutas tropicais e junto disso venha uma breve, sucinta, lacônica referência a Portugal. Mas nem por pastel de Belém brasileiro se interessa e bacalhau não chega à mesa de todos.
A gente, ou seja, nós, costumamos ter mais coisas para nos preocuparmos. Embora os assuntos que ainda sejam mais buscadas pelos brasileiros tenham a ver com futebol ou novelas ou, ainda, tragédias.
Eu vivo um dilema conceitual aqui. É parecido com o sentimento que Baudelaire e seus contemporâneos tiveram quando inventaram a modernidade e o modernismo. (pretensioso)
O meu dilema é reconhecer que meu sobrenome me diz que eu não sou índio, mas saber que tenho mais em comum com um índio do que com um português. No entanto, como ocidental, tenha mais em comum com um português do que com um índio. O dilema está nessa base de negação e de reconhecimento. Enquanto colonizado. Enquanto colonizador. Enquanto ocidental.
Eu, que me interessava por Fernando Pessoa e Saramago tanto quanto por Mia Couto ou Clarice Lispector. Sem pátrias por detrás. Sobretudo pelo fato de que brasileiro só vincula o mito da nacionalidade eventualmente duas ou três vezes por década. Ou, nas piores hipóteses, quando saem do Brasil. Mas essa parte não nos ensina como a outra.
Aqui na Europa eu aprendi a ser brasileiro. Não que eu tenha alguma coisa a ver com capoeira ou bucho de bode ou chimarrão. Não que eu tenha alguma coisa com futebol ou novelas. Mas aqui eu entendi porque melancolia não faz sucesso no Brasil. Porque Samba não soa bem em francês ou português de Portugal.
Mas eu disse tudo isso - e talvez não tenha sido completamente útil, porque ao meio me perdi com esses devaneios sobre meu ponto de vista anterior e não sobre minha experiência - para refletir a realidade que recai sobre mim, dia após dias - para dizer vos, em bom português de Portugal, como sobrevive um imigrante anónimo, em meio a situação alienada dos indivíduos das grandes cidades ocidentais, geralmente tensa e inadaptada a um mundo representativo e inautêntico, que nos despersonaliza e nos delineia.
Eu disse tudo isso para quando eu voltar eu poder saber exatamente o que eu estava sentindo hoje. Quando no computador da faculdade o corretor do Word me diz que eu devo escrever exactamente.
Hoje, indo pra universidade, eu li numa pixação. “Morte a Maitê Proença e seus conterrâneos”. Mais adiante numa igreja protestante que comemora 100 em Portugal eu li: “Geração a geração nós nos reconfortamos em Deus”. Esta ultima, muito mais enigmática para mim do que a primeira. Às vezes eu queria ter aquele olhar de quando começava a aprender a ler. Que enxergava cada palavra como um mistério a ser decifrado. Eu, que saía com minha mãe na feira de sábado e lia cada palavra, cada propaganda, cada sinal gráfico que fosse decifrável, como sendo o maior êxito da minha existência. Pouco a pouco torna-se natural ler e as palavras perdem a magia para a maioria das pessoas. Ou talvez nunca tenha havido magia nenhuma nas pessoas.
Eu, nos meus delírios, arranjei outros modos para enxergá-las, mas nunca mais tive aquelas sensações de quando ia a feira aos sábados. Aqui em Portugal ainda é possível ler, para além dessas interessantes manifestações, coisas do tipo: actriz, reflectir, loiça… tudo isso pelo fato de que, embora os inúmeros acordos, os portugueses sempre mantiveram-se tradicionais em relação as mudanças e rupturas, e não só as ortográficas.
E eu não digo que são aqueles que nada percebem sobre língua. No Brasil, para o Zé da Farmácia, pouca coisa importa se não vão usar mais o hífen em antisséptico. Mas em Portugal, dos Zés das Farmácias aos professores de literatura, escrever atuar e não actuar é algo na mesma ordem de uma blasfêmia. É dizer brasileiro e não português; embora dizer e escrever também tenha muito pouco em comum para um brasileiro. De facto, desculpem, de fato, é difícil perceber essa discussão que se passa aqui. Se é daqui também que surgem os acordos “ortográficos”, diga-se de passagem.
Mas parafraseando a Maria das Sardinhas: “isso é uma tontice” e brasileiro sabe muito bem. Nossa soberania não fica ameaçada, já que também não está em causa algum título da Copa do Mundo. Nossa cultura permanece a mesma multicultural, difusa em milhões de identidades. E por certo que daqui uns anos vamos atingir o mesmo grau de descontentamento dos nossos pais europeus e mergulhar na melancolia de um passado esplendoroso. Claro que precisamos de chegar a este presente de esplendor ainda.
Mas eu posso assegurar-vos, meus caros, vamos ter saudades também de ter sido o que nunca fomos.

8 comentários:

  1. Faz tempo que não leio um texto tão abrangente sobre crise de identidade. Que capacidade de percepção, que sintonia "fina", que acuidade! Um detalhismo chinês para uma questão que se torna, a cada dia um verdadeiro "buscar agulha no palheiro". Pragmaticamente uma impossibilidade. O sentimento da solidão, a constatação da absoluta necessidade de tolerância, a relativização das diferenças e o afeto escondido que a língua deflagra, sem haver a mínima possibilidade de controle... Seu texto é emocionante, Wendel. E eu não consigo controlar o lugar comum do "orgulho" de um dia ter-me sentado à frente de uma turma de alunos em que você estava. Ali não havia como prever, aqui há como constatar. Obrigado por sua sinceridade!

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  2. Eu sentia o mesmo quando estava em Orlando, só que com menos galmour. Ótimo.

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  3. Ele não participou do BBB...

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  4. Hoje esse cara é meu professor de Redação, quem mandou seguir a cabeça dos professores da época, poderia estar famoso agr

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  5. Melhor texto que eu já li, mudo minha percepção de viver, amar e sentir. Somente inexequível

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