só tem de ser pago o que é justo

Capítulo 1 – o acontecimento

Educaram me a ser arrogante, agora devo punir me. Peço desculpas, nunca roubei nada antes e por isso não mereço complacência.
No começo disseste me que nesta terra todos são como você.
Pareces me tão humano, demasiado humano, eu diria.
Eu acho que és um filósofo, não, apenas um observador. Nada passa aos teus olhos, e, com eles podes partir, consegues romper e penetrar naquilo que aos outros é impenetrável. Não sei se é boa ideia ajudar-me, meu senhor. Veja bem, sou uma ladra. Apenas isto. Roubei este pão e ainda sou recompensada? Por mais que tenhas o dom de ver, não podes, afinal, com um olhar, perscrutar minhas entranhas e assim estar preparado. Admitas, logo, sou imprevisível. A solução que encontro é um pagamento. Devo pagar-te, não só pelo pão que roubei, mas pela sua bondade. Diga-me como, por favor.

Capítulo 2 – o trabalho

Seguirei com determinação até que minha dívida esteja sanada. Consigo suportar qualquer tipo de trabalho, desde que possa dormir ao menos sete horas por noite e que tenha pão e água para fornecer-me energia. Peço, de antemão, desculpas pelo meu egoísmo em fazer qualquer tipo de exigência. Não mereço nada.

Capítulo 3 – a fraqueza

Este ato provocatório é compreensível. Meu senhor, eu aceito os ciúmes de tua esposa. Tu andas a dedicar-me muito tempo e benevolência, mesmo eu sendo indigna de tudo isto. Por favor, volte a ela e conte lhe o quanto a ama e a devota. É julho e as festas aproximam-se no calendário, devem estar bem para que estes momentos sejam, assim como todos os anos, inesquecíveis.

Capítulo 4 – as festas, afinal

Neste dia incrível em minha existência, quero agradecer a todos e a todas, que durante esses meses, compartilharam deste lugar maravilhoso comigo e permitiram aqui a minha presença. Eu protagonizei grandes momentos e acredito que tenha mudado diante da educação e da moral que paira na atmosfera desta sublime aldeia, aqui, neste vale esquecido.

Tocam os sinos da Igreja.

Capítulo 5 – o crime

Meu senhor, muito obrigado por considerar paga minha divida, mesmo depois de apenas alguns meses de trabalho. Ainda sinto me em obrigação contigo e por isso lhe ofereço mais um pedido.

Capítulo 6 – no qual a verdade torna-se verdade

Agora entendo o quão perfeitos são os seres humanos. Tão doces, tão devotados e benevolentes. Cheguei a esta aldeia e roubei, pois sentia fome. Fui acolhida pela vítima, que ao invés de punir-me e entregar-me a apreciação, acolheu-me em sua casa e permitiu-me conciliar sem que sofresse algum dano. Depois de alguns meses deixaram-me livre para seguir, mas estou presa no momento em que mordi o primeiro pedaço daquele pão.

Capítulo último

O verão chega ao fim. Não tenho do que queixar-me. O mundo não poderia tratar-me de maneira melhor. Tenho amigos, do que mais preciso? De qualquer forma, devo partir. Talvez, se partir pela noite, ninguém sofrerá com alguma despedida, mesmo que seja pretensioso da minha parte achar que mereço tal sentimento. Queria poder pedir, mas não posso denunciar minha jornada, tenho certeza de que ninguém se importará se eu levar comigo uma maçã do pomar para a viagem. Desde minha infância que não choro. Esta maçã conterá a minha saudade por este lugar. Quando tiver fome, devo comê-la.
Adeus.

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