Cão insano / A crônica do quarto ensanguentado



Publico, agora, um conto feito na altura dos meus 16 anos. Ele foi publicado por um professor quando eu era calouro na Universidade e hoje já tem mais de 5 anos, mais ou menos.


Não mudei nada no texto, embora tenha tido vontade. A ilustração é completamente inédita.


Cão insano
Minha mãe sempre disse aos berros:


-Você é um louco!


Louco? Eu não era louco, não poderia ser. Tudo era proposital. Às vezes, quando queimava insetos vivos ou caçava pássaros para arrancarem-lhe os olhos e os bicos, ou quando abria ratos torturando-os, sempre, em todos os momentos, sabia o que estava fazendo, fazia de desígnio, gostava daquilo, mas sabia que era errado. E por isso não sou louco, pois loucos não têm consciência do que fazem.


Um dia qualquer, porém, o bater insofismável do coração de meu cachorro me atordoou. O vira-lata gracejava no tapete toda sua forma corpulenta impura, com sua baba asquerosa no assoalho pingando e seus pêlos se espalhando com o vento, enroscando-se um nos outros e parando perto do vaso de dálias, no canto imundo, cheio de mofo e umidade. Mas isso, toda essa condição degradante, não me incomodava. O fastidioso bater, no entanto, daquele tam tam irremediável incitava toda a cólera em minhas entranhas. Chegava ao meu ouvido um som baixo, monótono, rápido, como de um relógio quando abafado por uma almofada e, eu sabia, repito, era o coração do débil animal a minha frente.


Contudo, eu me continha. Tentava manter fixamente meus pensamentos em outras coisas. Podia ouvir muitas músicas, certamente desenfreadas e desconexas, mas lá estavam elas, em minha mente, tocando cada parte; até que, de repente, a 5° sinfonia de Bethoveen fosse rompida pelo horror, por toda a maldição dos meus ouvidos sadios.


A cada instante o som ficava mais rápido, mais alto, mais rápido, ainda mais alto. Sentia meus maxilares tremerem com as ondas sonoras que irradiavam da criatura ignomínia e me consumia, destruía-me virulentamente, incitando toda a insanidade contida que não mais estava em meu controle.


-A sua hora chegou maldito!


Gritei como um histérico ao voar em direção ao cão que se debateu freneticamente enquanto eu o estrangulava, mordendo-me, unhando-me, exalando toda a sua podridão de raça impura, impregnando em minha pele, em minha roupa, forçando-me a largá-lo.


- Que nojo! Que ódio, Que nojo! Ser tétrico, pérfido, asqueroso, vil!


Bradava colericamente no momento em que ele guinchava sufocado olhando para mim, implorando ajuda, piedade.


Neste momento, somente neste, fui um louco. O trivial cortou meu coração. Rompi em prantos diluviosos que racharam minha cabeça com uma dor insuportável. Abracei-o, tentei confortá-lo, sem cansar em nenhum minuto. Ele tinha de viver, não podia ir embora.


Não obstante, todos os esforços que perpetrei durante todos os trinta minutos ali no chão, abraçado ao cachorro, foram precisamente os causadores de seu óbito. Abraçava-o com tanta força que não pude perceber que estava debelando-o ainda mais. Estava morto. Virei e examinei o cadáver. Sim, era uma pedra. Coloquei meu ouvido no coração e ali o mantive por muito tempo. Estava petrificado, não mais me perturbaria.


- Achas mesmo que sou louco mãe?


Minha consciência gritava a cada segundo com ecos infindos que irradiavam por todo meu corpo, proporcionando-me um prazer suntuoso...


Logo depois que constatei a morte, minha dor de cabeça desvaneceu levando consigo todo o pranto que me rebaixava à condição ignóbil do demente oclocrata1. Mal pude me conter de excitação quando me veio à mente que o cão era a paixão de minha mãe, que ela o amava mais que a mim mesmo, que ele era seu companheiro, confidente; o único que poderia deprimi-la se morresse.


Bem-feito ser maquiavélico, sem alma e sem pudor. Ladrão de mães, sorrateiro caçador de gatos, ínfimo hipócrita. Nunca mais roubaria meu lugar de direito, ser miscigenado, sem pedigree. Eu o matei, eu o matei!


Então o cortei. Esquartejei-o e arranquei sua pele.


O badalar infernal do sino da igreja anunciou o fim do dia; e era a hora em que minha mãe chegaria para cumprir com seu ritual cotidiano, entrando pela porta dos fundos, chamando pelo detestável, acariciando o pérfido, servindo-lhe comida; para depois, só depois de todo o trato, retirar o riso incivil dos lábios sem carne e me dizer com sua voz de tristeza, de desprezo.


-Boa noite.


Ah! Desgraçado! Seu sangue negro infestou todo o piso e a cal da parede. Não mais teria tempo de escondê-lo sem deixar vestígios. O que faria? Os passos maternais já eram evidentes e o nitrir enferrujado do portão denunciava sua chegada.


Ela me odiaria mais!... Ela me chamaria de louco... Me odiaria ainda mais, muito mais e eu não poderia suportar, e eu não sou louco...


A faca em minhas mãos, ensangüentada e gordurosa, me salvou.


Meu coração trovejou por um segundo e qualquer mortal em um raio de cem metros pôde ouvi-lo com toda a sua intensidade e plenitude, pela última vez.


A porta aberta com violência mostrou os olhos atônitos e lacrimejantes de minha mãe. Ela gritou:


-Seu louco!


E a faca ultrapassou a pele, rompeu o músculo; o sangue esguichou e parou em todo o corpo com sua marcha nupcial em direção às minhas células.



10 comentários:

  1. Esse conto me lembra demais o Poe... ou o Poe me lembra demais o cão insano... depois de Borges nada mais sei...

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  2. Que ótimo neste blog o conto mais oclocrata de todos os tempos!

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  3. fabris! hahaha
    adorei o comentário!
    eu escrevi aos 16 anos e devo ter lido Borges aos 21, mas Poe, este era livro de cabeceira desde os 13!

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  4. Gato, cá pra nós, eu sou de minas mas você é o verdadeiro doce de leite...

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  5. Gato, não sou Allan Poe mas posso fazer você se arrepiar todinho...

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